#114. Gente que não gosta de viajar
Tempo de leitura: 6 minutos.
Olá,
Como pode fevereiro, um mês tão pequeno e caber tanta coisa. Não sei, mas coube — e nem me refiro à guerra na Ucrânia.
Descrever-se é difícil. Há uma linha tênue entre mostrar seu melhor lado e soar esnobe e, frente a esse dilema, não é raro nos apegarmos a clichês. “Gosto de ver filmes”, “adoro comer”, “vivo para viajar”. Quem não gosta disso tudo? Bom… eu não curto muito viajar.
Digo, até gosto, mas não faço questão, de modo que viajo quase sempre arrastado — a trabalho ou por alguém; nos últimos anos, pela P.
Em fevereiro, estivemos na Ilha do Mel (PR), uma viagem bate-volta (um fim de semana) adiada de janeiro, e em Belo Horizonte (MG), onde a acompanhei num compromisso dela. De lá, esticamos dois dias para Ouro Preto.
Foi a minha primeira vez em Minas Gerais. Na capital, ficamos na Savassi, uma região de que nunca tinha ouvido falar e que achei bastante agradável, com muitos restaurantes legais, prédios históricos, praças e tudo mais; uma atmosfera meio boêmia que deus me livre, mas quem me dera.
Fiquei intrigado com as árvores dali. Demos sorte de pegar dias ensolarados e essa combinação, não sei explicar direito, me remeteu à infância. Acho que foram o porte e as espécies de árvores, enormes e variadas, formando sombras que se impõem na paisagem e geram uma sensação de tarde de domingo na casa da vó com “Clube da Esquina” tocando ao fundo — esse detalhe acústico, uma liberdade poética da minha parte.
Ainda nos clichês, deliciamo-nos com muito pão de queijo, mas o café foi uma decepção: o do hotel era horrível e, ao contrário dos doces e queijos, não achamos pó à venda a preços melhores que os cobrados aqui em Curitiba. Às vezes os clichês perdem a razão de ser.
🖼 Algumas fotos de Belo Horizonte.
Na última década, viagens viraram pretexto para olhar para mapas digitais. O celular tomou para si muitas atividades e rotinas que estavam espalhadas em outros dispositivos e lugares, mas não me recordo de mapas serem tão centrais em nossas vidas, ou na minha.
Até havia um no porta-luvas do carro, um negócio tão complicado que meu pai preferia pedir orientação a alguém aleatório na beira da estrada, não sem antes rodar um tempão a esmo crente de que estava no caminho certo porque homens, mas era isso. O conceito de “mapa” me era mais familiar no cinema, em filmes como os da série “Indiana Jones”, que no cotidiano.
Nessas e em outras viagens recentes, passei tanto tempo olhando para mapas que eles ficaram gravados na minha cabeça. Mesmo em casa, desde que abdiquei do carro próprio, consulto bastante o mapa do celular para decidir se um trajeto pode ser feito a pé (até 2, no máximo 2,5 km a depender do clima, rola) ou se pego uma carona em aplicativo ou, em tempos pré-pandêmicos, ônibus.
Em Ouro Preto, segunda parte da nossa viagem, os mapas não foram tão úteis. Qualquer “350 metros até o seu destino” se traduzia em suor e cansaço devido às ladeiras íngremes com calçamento irregular das vias. Muito bonita essa arquitetura histórica, mas não é por acaso que elas só resistem em lugares onde alguma lei mantém as coisas como eram no século XVIII.
Fora isso, Ouro Preto é uma cidade bem legal, com paisagens de tirar o fôlego, museus e igrejas fascinantes e ótimos restaurantes — comemos na Parada do Conde, O Passo, Bené da Flauta e Acaso 85.
Viajar a lazer cansa demais.
🖼 Algumas fotos de Ouro Preto.
P. costuma dizer que sou a única pessoa do mundo que não gosta de viajar. Suspeito que não seja o caso. Minha teoria é de que somos muitos, mas pouco expressivos, o que é compreensível: alguém que viaja sempre tem história para contar — até alguém que não faz questão, como eu. Já quem não gosta de viagens não fala de viagens sob o risco de se tornar monotemático e, portanto, chato.
Não que viajantes sejam sempre legais. Um grande medo que tenho é topar com alguém recém-chegado de uma viagem. Não estou só. Em Minas, comecei a ler “Como escrever bem”, do William Zinsser. A certa altura, dei uma boa risada com este trecho do capítulo em que o autor aborda a escrita sobre lugares:
Ninguém se transforma tão rapidamente em um chato quanto um viajante que chega em casa depois de suas andanças. Ele gostou tanto da viagem que quer logo nos contar tudo sobre ela — e “tudo” é justamente o que nós não queremos ouvir. Queremos ouvir apenas algumas coisas.
Espero não ter sido (muito) chato no meu relato acima.
Em fevereiro, consegui terminar dois livros de ficção: “Foi apenas um sonho”, do Richard Yates, e “Pequenos incêndios por toda parte”, da Celest Ng.
“Pequenos incêndios…” é ok, uma história minimamente interessante, ainda que não muito bem desenvolvida. Parece um desses seriados de mistério, uma temporada só, que as plataformas de streaming despejam aos baldes todo mês pois baratos e devem render #engajamento. Não à toa, o livro virou série — uma a que não assistirei.
De “Foi apenas um sonho”, só elogios. Foi a segunda vez que o li e gostei tanto quanto me lembrava da primeira. O livro conta a história do casal Wheeler, Frank e April, vivendo o sonho americano nos anos 1950, e o que acontece quando o potencial que achamos ter não se realiza (ou mesmo inexiste; isso não fica óbvio), quando aquele acordo ora tácito, ora explícito entre o casal se desalinha e transforma sonhos em pesadelos e admiração em ódio ou, pior, indiferença.
Em suas páginas está uma das minhas passagens favoritas da literatura:
Então a pessoa descobre que está levando a vida assim como o Grupo de Teatro Laurel atuou em “A floresta petrificada”, ou como Steve Kovick tocava bateria — com seriedade, incompetência e presunção, e de um modo totalmente errado; a pessoa descobre que dizia sim quando queria dizer não, e “Precisamos estar juntos nisso” quando queria dizer exatamente o contrário.
O livro virou filme em 2008, dirigido pelo Sam Mendes e estrelado por Kate Winslet e Leonardo DiCaprio. Não tinha como ser ruim — e não é mesmo.
Com as viagens, sobrou pouco tempo para ver filmes. No começo do mês vi “Matrix Ressurrections” (horrível) e dia desses, “Mães paralelas”, o novo do Almodóvar (gostei bastante).
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Você pode indicar minha newsletter a quem ache que possa gostar dela. Encaminhe este e-mail ou repasse o link de inscrição: https://newsletter.ghed.in. Não tenho qualquer pretensão com isto aqui, mas gosto de pensar que estou sendo lido — mais ainda se numa manhã de domingo, acompanhado(a) de um bom café.
Por hoje, era isso.
Abraço,
Rodrigo Ghedin.
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