#122. Cheiro de manga podre
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Olá,
Quando venho ao interior, à minha cidade natal, gosto de calçar os tênis de corrida e andar a esmo pela cidade.
É um exercício duplo, físico e nostálgico. Uma desculpa para revisitar sem pressa lugares onde cresci, ou que frequentava enquanto crescia.
Mesmo numa cidade pequena, são surpreendentes as mudanças e a frequência delas. E, talvez por uma infeliz coincidência ou algum viés obscuro agindo em mim, tenho a sensação de que boa parte dessas mudanças são para pior.
Neste ano, por exemplo, a praça de alimentação ao ar livre da praça central, antes composta por trailers, ganhou uma estrutura em alvenaria gigantesca. (Apesar do prognóstico, ainda não dá para julgar porque não está finalizada.)
O velho cinema de rua, após anos abandonado, foi transformado em mais uma igreja.
A pizzaria mais antiga de que me recordo, local de refeições especiais na infância, com uma pintura aleatória na fachada do Don Corleone/Marlon Brando comendo pizza, pelo visto não resistiu à pandemia e fechou. O prédio está para alugar.
A sorveteria tradicional, que tinha uma frente ampla ao ar livre, cheia de mesas e cadeiras, foi completamente fechada e virou uma extensão ou qualquer coisa relacionada a uma faculdade EAD.
Apesar disso, algumas coisas boas não mudam.
Ver pessoas no fim de tarde cuidando dos seus jardins, regando plantas sob o calor escaldante que faz aqui, traz paz, uma aura meio bucólica. É algo que associo ao interior. Tem isso na capital, sim, mas talvez a “densidade” de pessoas cuidando de jardins seja maior longe dos grandes centros?
Nas andanças deste ano, chamou-me a atenção também o contraste entre casas velhas e novas, as primeiras às vezes de madeira, e, mesmo quando de alvenaria, com uma estética datada; as novas com aquele visual de shopping, ângulos retos, “minimalistas”, desalmadas.
Até do cheiro de mangas podres, que por essa época sobe forte perto das mangueiras que resistem nas ruas, vindo dos muitos frutos espalhados no chão, eu gosto. Faz aflorar memórias de outras épocas.
Dia desses o telejornal local exibiu uma reportagem explicando que agora é proibido plantar árvores frutíferas nas calçadas, em locais públicos. O cheiro de manga podre na rua, no verão, está com os dias contados.
Ontem foi o último dia em que era permitido fazer listas de melhores [qualquer coisa] de 2022. Sem essa pretensão, me permito listar abaixo coisas que me surpreenderam no ano que acabou — algumas já citadas em newsletters passadas, outras, inéditas:
- 🕹️ A short hike, de Adam Robinson-Yu. Um jogo calminho, curtinho, adorável.
- 📚 Anna Kariênina, de Lev Tolstói. Grande romance, em todos os sentidos. Li a (ótima) edição da Editora 34.
- 📚 Dias bárbaros: Uma vida no surfe, do William Finnegan. Jamais imaginei que fosse gostar de um livro sobre surfe. Este, uma autobiografia de Finnegan, é maravilhoso.
- 🎬 Drive my car, de Ryusuke Hamaguchi. Belo ensaio sobre o luto.
- 📚 O despertar de tudo: Uma nova história da humanidade, de David Graeber e David Wengrow. Uma abordagem menos linear, menos eurocêntrica, menos condescendente com povos originários e, afirmam os autores, mais correta. Recomendável ler depois de Yuval Harari e/ou Jared Diamond.
- 🎬 Pacto de sangue, de Billy Wilder. O filme mais “noir” a que já assisti.
Obrigado pela companhia. Que 2023 seja bom para nós!
Rodrigo Ghedin.